terça-feira, junho 14

O desejo dos outros

Outro dia me ligou a manicure para confirmar meu horário; aproveitei para desmarcar os pés e deixar agendado só as mãos. Expliquei que não queria ter o trabalho de tirar a meia-calça que me aquece nesses dias frios. Ocultei o principal motivo: fazer as mãos já ia tomar meu tempo dedicado à novela Cordel Encantado. Se fizesses os pés, perderia a novela inteira.

Sábia decisão a minha. Naquele dia, o capítulo estava especialmente bom. A princesa Açucena/Aurora tem movido mundos e fundos para fazer prevalecer sua vontade de se casar com Jesuíno, contrariando os desejos de seu pai de sangue, o rei Augusto. A infeliz Antonia sofre muito e um pouco mais porque está sendo obrigada a atender os desejos de seu irmão crápula, o coronelzinho Timóteo, e os do delegado Patoré. Ela vai se casar com o delegado asqueroso como parte do acordo que permitirá a Timóteo cometer um crime sem ser importunado pela Polícia.

Ao se lembrar do desejo manifestado por Cícero (“Se morrer quero ser enterrado com as glórias do cangaço”), o lindíssimo capitão Herculano interrompe o cortejo para levar à força o corpo de Cícero, contrariando os desejos da família de velar o filho perdido. Qual desejo vale mais, o do pobre Cícero ou o da pobre mãe?

Esses episódios ficcionais me levaram a pensar no livro da Maria Rita Kehl, “O tempo e o cão”, que acabei de ler. Ela fala das depressões na atualidade. E explica o quanto aquela mãe, extremamente dedicada e super onipresente, que atende prontamente todos os desejos do filho, contribui para a formação de um depressivo. O depressivo que não sente desejo, que não vivenciou o sentido de ausência-presença – fundamental para nossa formação – porque a mãe nunca lhe deixou faltar nada. O livro é de uma profundidade cativante. Levou merecidamente o prêmio Jabuti como livro do ano em 2010.

E penso o quanto abrimos mão de nossos desejos para atender os desejos dos outros, que podem ser caprichosos e custar caro. Nem sempre conseguimos distinguir aquilo que é nosso e o que é do outro. E não nos damos conta disso. Estamos lá, prontos para entender e atender o outro, e não sabemos nos ouvir, ouvir o nosso desejo, saber de fato o que queremos. Não estou falando de egoísmo, mas de desejos legítimos que confirmam nossa identidade e garantem nossa sanidade.

2 comentários:

Patricia disse...

Oi Cá, adorei a conexão que você fez, neste texto, com o livro da Maria Rita Kehl. Fica clara a intersecção e muito oportuna.
Parabéns também pelo post a mãe e a chuva.
Beijo e boa semana,
Patrícia

carina paccola disse...

Pat, querida, obrigada! Ai, esfriou de novo! Boa semana! beijos