quarta-feira, junho 29

Sinuca

Na minha curta época de TV – há uns 20 anos – éramos eu, um cinegrafista, um operador de VT e um motorista. Ficávamos longe, numa cidadezinha, e tínhamos que percorrer a região atrás de matérias. Havia um horário para enviar matéria para Londrina, via malote. Então depois de cumprida a pauta e enviado o material, estávamos livres. A próxima parada era um boteco com uma mesa de sinuca.

Eu e o cinegrafista contra o operador e o motorista. Eu era café-com-leite. Mas havia boa vontade dos meus colegas. Eles me ensinavam como me posicionar, escolhiam a bola para mim e diziam até a intensidade com que eu devia jogar. Meu principal instrutor era o motorista, meu adversário. E todos comemoravam os meus acertos.

Às vezes eu errava tanto que meu parceiro perdia a paciência. Uma vez, depois do expediente, lá estávamos num botecão perto de uma grande empresa. O bar encheu de operários. E, naquele dia, especialmente, meu parceiro reclamava muito das minhas jogadas. Ele estava mesmo sem paciência.

Quanto mais ele falava mais eu errava. Até que um dos operários me chamou para ser parceira dele. É claro que aceitei. O melhor é que o cara era tão bom que jogava por mim e por ele. Então, mesmo quando eu errava, ele salvava. A nossa dupla ficou imbatível. Ninguém nos tirava da mesa. Nem mesmo o cinegrafista. Terminei o dia como campeã e com uma satisfação interna enorme. Mas nos dias seguintes tudo voltou à rotina: eu, com meus erros; meu parceiro, com as queixas; e todos nós, contentes.

terça-feira, junho 14

O desejo dos outros

Outro dia me ligou a manicure para confirmar meu horário; aproveitei para desmarcar os pés e deixar agendado só as mãos. Expliquei que não queria ter o trabalho de tirar a meia-calça que me aquece nesses dias frios. Ocultei o principal motivo: fazer as mãos já ia tomar meu tempo dedicado à novela Cordel Encantado. Se fizesses os pés, perderia a novela inteira.

Sábia decisão a minha. Naquele dia, o capítulo estava especialmente bom. A princesa Açucena/Aurora tem movido mundos e fundos para fazer prevalecer sua vontade de se casar com Jesuíno, contrariando os desejos de seu pai de sangue, o rei Augusto. A infeliz Antonia sofre muito e um pouco mais porque está sendo obrigada a atender os desejos de seu irmão crápula, o coronelzinho Timóteo, e os do delegado Patoré. Ela vai se casar com o delegado asqueroso como parte do acordo que permitirá a Timóteo cometer um crime sem ser importunado pela Polícia.

Ao se lembrar do desejo manifestado por Cícero (“Se morrer quero ser enterrado com as glórias do cangaço”), o lindíssimo capitão Herculano interrompe o cortejo para levar à força o corpo de Cícero, contrariando os desejos da família de velar o filho perdido. Qual desejo vale mais, o do pobre Cícero ou o da pobre mãe?

Esses episódios ficcionais me levaram a pensar no livro da Maria Rita Kehl, “O tempo e o cão”, que acabei de ler. Ela fala das depressões na atualidade. E explica o quanto aquela mãe, extremamente dedicada e super onipresente, que atende prontamente todos os desejos do filho, contribui para a formação de um depressivo. O depressivo que não sente desejo, que não vivenciou o sentido de ausência-presença – fundamental para nossa formação – porque a mãe nunca lhe deixou faltar nada. O livro é de uma profundidade cativante. Levou merecidamente o prêmio Jabuti como livro do ano em 2010.

E penso o quanto abrimos mão de nossos desejos para atender os desejos dos outros, que podem ser caprichosos e custar caro. Nem sempre conseguimos distinguir aquilo que é nosso e o que é do outro. E não nos damos conta disso. Estamos lá, prontos para entender e atender o outro, e não sabemos nos ouvir, ouvir o nosso desejo, saber de fato o que queremos. Não estou falando de egoísmo, mas de desejos legítimos que confirmam nossa identidade e garantem nossa sanidade.

quinta-feira, junho 9

A mãe e a chuva!

Acordo com o barulho da chuva. São 5 da manhã. Penso na seca e aceito a chuva. Penso também que vai esfriar mais e que eu não combino com frio. Penso que vão cancelar a viagem pela região que eu iria acompanhar para fazer matéria sobre obras. Mas sei que vou ter que esperar mais tempo para confirmar o cancelamento. Não consigo mais dormir, mas fico na cama até tocar o despertador. Na hora marcada, me levanto e cumpro todo o ritual matinal.

Na hora de acordar meu filho, ele reclama: – Mãe, tá frio!! Eu concordo e acrescento que está chovendo. Ele pede: – Deixa eu faltar da aula? Penso que este apelo não faria nenhum sentido na minha infância. Nunca nunquinha meu pai me deixaria faltar porque está chovendo. Aliás, não havia nenhum motivo que justificasse a falta à aula. Doença, só aquelas que realmente te derrubavam, tipo hepatite, sarampo ou algo assim.

Mas eu cedi ao apelo. Pedi um beijo e deixei que voltasse à cama. Péssima mãe, eu. Ainda fechei a porta do quarto dele para que meus barulhos não atrapalhassem seu sono. E pensei que eu queria que minha mãe estivesse aqui e me dissesse que, não, eu não precisava também sair para o trabalho porque a chuva acompanhada de frio é motivo mais que suficiente para todos voltarmos à cama.

Imagem: http://www.blogdokedj.com/2010/09/chuva.html

segunda-feira, junho 6

Letra H

No começo das palavras, a letra H é tão discreta que realça a vogal ao seu lado. Se o vizinho é uma consoante, parece música, quer fazer sons diferentes, borbulhantes, um chiado ou um nhém-nhém-nhém. No meio do nome de alguém, quer ser charmosa.
No final das interjeições, revela espanto, surpresa ou terror!
Serve também pra ajudar quem quer provar que é homem mesmo! Bem-humorada, ajuda as pessoas a rirem por escrito. Camaleoa esta letra, não?

quarta-feira, junho 1

No meio da rua

Ainda não são 7h30. No cruzamento perigoso, o velhinho japonês não observa as luzes do sinaleiro nem as faixas no chão. Se lança em meio aos carros, encarando os motoristas. Por que motivo ele se arrisca assim? Será que é para buscar o pão quentinho na padaria ou estará ávido por notícias do jornal, também quente, nas bancas? Ele deve ser do tempo em que confiar no olho no olho era suficiente. Como o dia mal começou, os motoristas ainda estão pensando nos sonhos que tiveram a noite e é melhor não estragar a manhã tão bonita com suas buzinas. O velhinho atravessa em paz e chega incólume ao seu destino.