sábado, março 24

Óculos escuros

Desde que descobrira que o marido tinha um caso com uma aluna de 16 anos entrara em desespero. Primeiro pensou que era um pesadelo. Como assim? Ele saindo com uma garota de 16? Os dois estavam casados havia 18, mesma idade da filha mais velha. Ela havia se casado grávida. Os dois construíram muita coisa juntos. Tinham vencido na vida. Uma vida modesta, mas honesta. Tinham mais dois filhos, uma de 12 e um de 10. E agora essa? Depois de chorar baldes e baldes, viu que precisava fazer alguma coisa. Já tinha posto ele pra fora, mas precisava fazer alguma coisa a mais. Não sabia bem o quê. Dias e dias pensando em vingança. Aquilo não ia ficar assim. Uma manhã, olhou-se no espelho e viu as olheiras escuras. A única expressão no rosto era de dor. Dor e, lá no fundo, ódio. Queria se livrar daquele pesadelo. Pensou então em comprar uma arma. Sim, iria acabar com a vida dele. Com a menina não faria nada. Era quase uma criança. Ele, sim, podia ter evitado a situação. E agora merecia morrer. Bateu a porta da rua e pisou firme na calçada. Sabia onde encontrar uma arma. Um conhecido trazia muamba do Paraguai, inclusive armas. Ela diria que era pra se sentir mais segura. Afinal, depois que o marido fora posto pra fora, quase não dormia de medo de ladrão. Caminhava pela rua quando se sentiu atraída por uma vitrine. Era uma ótica, com vários óculos em exposição. Resolveu entrar. Passou um bom tempo experimentando diferentes modelos. Encontrou um par tão bonito. Combinava com o rosto dela e com a cor dos cabelos. Quando se viu no espelho, as olheiras haviam sumido atrás das lentes escuras. O preço era o mesmo que o de uma arma. Pagou à vista. Colocou no rosto e voltou para casa se sentindo bonita.

quinta-feira, março 1

Destroços

O desafio era criar um objeto novo. Não que o objeto não existisse; afinal, não sou assim tão inventiva. Era recriar o já criado. Primeiro, criei na minha cabeça. Surgiram formas e cores, mas ainda incompletas. Precisava pensar o todo. Como diria o Jack, comecei por partes. No meio das partes, surgiu o quase todo. Conforme avançava, o desenho se definia. Trabalhei duro. Já pronto, faltava o acabamento. Juntei duas experiências diferentes com a minha inexperiência. Minha inexperiência e o desconhecimento de físicas e químicas falaram mais alto. O resultado foi desastroso. Foi a destruição do que havia criado. Soterrei minha arte. Agora, teria que virar escultora. Vieram lágrimas e desespero. Só me restou esfolar os dedos e me dobrar diante do novo desafio. Não sei se virei escultora ou arqueóloga. Não tenho cinzel, mas tenho que descobrir o quebra-cabeças que eu mesma montei. Cada movimento pra fora gera um movimento pra dentro. Fora, já sei o desenho que vou encontrar. Dentro, é um caminho sem fim.