sexta-feira, agosto 26

Sobre o crescimento

Não me lembro da casa e da cidade onde nasci. Quando me dei por gente, já morava na casa velha. A casa velha nem era tão velha; passamos a chamá-la de velha quando nos mudamos para a casa nova. Mas, se pensar bem, a casa velha era mais nova do que a casa nova.

Então, na casa velha eu não alcançava os lugares. Uma vez, na tentativa de apertar a campainha, subi na bicicleta e levei um tombo. O quarto das meninas era imenso sob o pequeno alcance da minha visão. Acima de cada cama, havia um quadrinho do batismo de cada uma. Me queixei ao meu pai de que ele havia pregado o quadro muito alto para mim. Eu queria beijar o quadrinho toda noite, antes de dormir, e não conseguia. Ele me tranquilizou: - Não precisa beijar o quadro. Já pensou se a gente quisesse beijar os santos da Igreja? O padre ia ter que arrumar uma escada...

No dia da mudança para a casa nova, quando saí pela última vez do meu quarto, ergui os pés e consegui apagar a luz. Eu havia crescido.

Hoje, quem cresceu foi meu filho. Não posso mais usar a estratégia de deixar doces e chocolates no alto do armário para controlar o consumo de porcarias. Ele, com suas pernas compridas, é quem me socorre quando meus braços são muito curtos.

quarta-feira, agosto 24

Último aviso

(Paulo Leminski)
caso alguma coisa me acontecer,
informem a família,
foi assim, assim tinha que ser


tinha que ser dor e dor
esse processo de crescer

tinha que vir dobrado
esse medo de não ser

tinha que ser mistério
esse meu modo de desaparecer


um poema, por exemplo,
caso alguma coisa me suceder,
vá que seja um indício

quem sabe ainda não acabei de escrever