sexta-feira, julho 29

Perdas e ganhos

Quando ela o conheceu, se apaixonou. E conforme foram se encontrando viu que valia a pena o investimento. Ele, super econômico, dava em conta gotas. Ela desconfiou, e ele confirmou: realmente havia um fundo fixo do qual ele não abria mão. Portanto, com ela, nada exclusivo. Mesmo sabendo dos riscos, ela manteve a aplicação, afinal, paixão é paixão. Achou que no momento em que quisesse era só desinvestir. Em cada encontro o retorno era positivo, embora fosse um lucro de curtíssimo prazo. Ela nunca esquecia que a história estava destinada à falência. No balanço, viu que o prejuízo era grande. Ele era muito inadimplente e estava difícil cobrir o rombo no coração. Resolveu resgatar sua dignidade. Pensou que fosse morrer. Mas, como tantas vezes antes, sabia que sobreviveria a mais aquela morte.

quarta-feira, julho 27

Todas as vidas

(Cora Coralina)

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

segunda-feira, julho 11

Duas coisas

Eu não sei lidar com duas coisas: o frio e os eletrônicos. O frio me deixa imobilizada. Não quero fazer nada (já escrevi isso milhões de vezes): levantar, tomar banho, me trocar, sair, voltar, sentar, deitar, tomar água, comer, nada, nada, nada. Eu queria dormir e só acordar quando estivesse tudo quentinho ao meu redor. Eu gosto de sentir meu corpo quentinho. Não gosto de frio, de banho frio, de cachoeira fria, de nada frio. Só de sorvete. Mas sorvete é bom no calor!

Outra coisa que atrapalha minha vida são os eletrônicos. Não, na verdade, eles ajudam a minha vida, mas eu não entendo direito como funcionam. E não tenho a mínima curiosidade em entender como programa, como altera, como acrescenta. Eu quero que funcionem como se fosse mágica. Nessas horas, ter um filho ao lado ajuda bastante.

Quem faz os acertos, as programações, tudo é ele. O problema é quando no recinto estamos apenas o aparelho e eu. E aí sem querer eu aperto algum botão e desconfiguro alguma coisa. Entro em desespero e tento desfazer (nessas horas a tecla Control Z cairia super bem), mas não consigo. E quanto mais eu aperto botão, pior fica.

Faz uns três dias consegui sem querer deixar o telefone de casa no modo silencioso. Ele tem identificador de chamadas. Então várias vezes eu tinha que ir lá e conferir se havia alguma chamada não atendida. E volta e meia havia alguma. Eu ligava de volta, dizia que estava no banho ou, dependendo da pessoa, confessava que eu não conseguia mais fazer meu telefone fazer barulho.

Não lembro onde guardei o manual. Meu filho voltou de viagem e também não conseguiu resolver, ou seja, a coisa foi feia. A sorte é que comprei, sem perceber, dois aparelhos (um para funcionar de extensão). Agora coloquei em uso o segundo aparelho porque o primeiro está lá, mudo, sem conseguir se expressar. Tenho certeza que ele mesmo já me gritou que botão devo apertar, mas é uma voz inaudível.