segunda-feira, setembro 12

As mães

As mães são caricatas. Tudo nelas é exagero.
Longe de meus olhos, quem cuida do meu filho?
As mães amam em exagero e se preocupam em exagero.
Como não ser exagerada diante das tragédias do mundo?
As mães queriam logo ser Deus para controlar tudo e manter seus filhos sempre longe do perigo. Longe das chuvas, trovoadas, diarreias, vírus e de toda maldade do mundo.
Longe também do ventinho frio que pode trazer um resfriado. Filhos, andem sempre agasalhados para tranquilizar suas mães!
Mães queriam ser polvos para ter mil tentáculos sobre seus filhos.
Mesmo as mães incrédulas rezam todos os dias rogando proteção aos seus meninos quando estão longe.
Mães queriam ser Argos, figura mitológica com muitos olhos, para não descansar nem mesmo quando os filhos dormem.
Mães... ainda bem que as mães não são como gostariam, se não quem protegeria os filhos de suas próprias mães?

sexta-feira, agosto 26

Sobre o crescimento

Não me lembro da casa e da cidade onde nasci. Quando me dei por gente, já morava na casa velha. A casa velha nem era tão velha; passamos a chamá-la de velha quando nos mudamos para a casa nova. Mas, se pensar bem, a casa velha era mais nova do que a casa nova.

Então, na casa velha eu não alcançava os lugares. Uma vez, na tentativa de apertar a campainha, subi na bicicleta e levei um tombo. O quarto das meninas era imenso sob o pequeno alcance da minha visão. Acima de cada cama, havia um quadrinho do batismo de cada uma. Me queixei ao meu pai de que ele havia pregado o quadro muito alto para mim. Eu queria beijar o quadrinho toda noite, antes de dormir, e não conseguia. Ele me tranquilizou: - Não precisa beijar o quadro. Já pensou se a gente quisesse beijar os santos da Igreja? O padre ia ter que arrumar uma escada...

No dia da mudança para a casa nova, quando saí pela última vez do meu quarto, ergui os pés e consegui apagar a luz. Eu havia crescido.

Hoje, quem cresceu foi meu filho. Não posso mais usar a estratégia de deixar doces e chocolates no alto do armário para controlar o consumo de porcarias. Ele, com suas pernas compridas, é quem me socorre quando meus braços são muito curtos.

quarta-feira, agosto 24

Último aviso

(Paulo Leminski)
caso alguma coisa me acontecer,
informem a família,
foi assim, assim tinha que ser


tinha que ser dor e dor
esse processo de crescer

tinha que vir dobrado
esse medo de não ser

tinha que ser mistério
esse meu modo de desaparecer


um poema, por exemplo,
caso alguma coisa me suceder,
vá que seja um indício

quem sabe ainda não acabei de escrever



sexta-feira, julho 29

Perdas e ganhos

Quando ela o conheceu, se apaixonou. E conforme foram se encontrando viu que valia a pena o investimento. Ele, super econômico, dava em conta gotas. Ela desconfiou, e ele confirmou: realmente havia um fundo fixo do qual ele não abria mão. Portanto, com ela, nada exclusivo. Mesmo sabendo dos riscos, ela manteve a aplicação, afinal, paixão é paixão. Achou que no momento em que quisesse era só desinvestir. Em cada encontro o retorno era positivo, embora fosse um lucro de curtíssimo prazo. Ela nunca esquecia que a história estava destinada à falência. No balanço, viu que o prejuízo era grande. Ele era muito inadimplente e estava difícil cobrir o rombo no coração. Resolveu resgatar sua dignidade. Pensou que fosse morrer. Mas, como tantas vezes antes, sabia que sobreviveria a mais aquela morte.

quarta-feira, julho 27

Todas as vidas

(Cora Coralina)

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

segunda-feira, julho 11

Duas coisas

Eu não sei lidar com duas coisas: o frio e os eletrônicos. O frio me deixa imobilizada. Não quero fazer nada (já escrevi isso milhões de vezes): levantar, tomar banho, me trocar, sair, voltar, sentar, deitar, tomar água, comer, nada, nada, nada. Eu queria dormir e só acordar quando estivesse tudo quentinho ao meu redor. Eu gosto de sentir meu corpo quentinho. Não gosto de frio, de banho frio, de cachoeira fria, de nada frio. Só de sorvete. Mas sorvete é bom no calor!

Outra coisa que atrapalha minha vida são os eletrônicos. Não, na verdade, eles ajudam a minha vida, mas eu não entendo direito como funcionam. E não tenho a mínima curiosidade em entender como programa, como altera, como acrescenta. Eu quero que funcionem como se fosse mágica. Nessas horas, ter um filho ao lado ajuda bastante.

Quem faz os acertos, as programações, tudo é ele. O problema é quando no recinto estamos apenas o aparelho e eu. E aí sem querer eu aperto algum botão e desconfiguro alguma coisa. Entro em desespero e tento desfazer (nessas horas a tecla Control Z cairia super bem), mas não consigo. E quanto mais eu aperto botão, pior fica.

Faz uns três dias consegui sem querer deixar o telefone de casa no modo silencioso. Ele tem identificador de chamadas. Então várias vezes eu tinha que ir lá e conferir se havia alguma chamada não atendida. E volta e meia havia alguma. Eu ligava de volta, dizia que estava no banho ou, dependendo da pessoa, confessava que eu não conseguia mais fazer meu telefone fazer barulho.

Não lembro onde guardei o manual. Meu filho voltou de viagem e também não conseguiu resolver, ou seja, a coisa foi feia. A sorte é que comprei, sem perceber, dois aparelhos (um para funcionar de extensão). Agora coloquei em uso o segundo aparelho porque o primeiro está lá, mudo, sem conseguir se expressar. Tenho certeza que ele mesmo já me gritou que botão devo apertar, mas é uma voz inaudível.

quarta-feira, junho 29

Sinuca

Na minha curta época de TV – há uns 20 anos – éramos eu, um cinegrafista, um operador de VT e um motorista. Ficávamos longe, numa cidadezinha, e tínhamos que percorrer a região atrás de matérias. Havia um horário para enviar matéria para Londrina, via malote. Então depois de cumprida a pauta e enviado o material, estávamos livres. A próxima parada era um boteco com uma mesa de sinuca.

Eu e o cinegrafista contra o operador e o motorista. Eu era café-com-leite. Mas havia boa vontade dos meus colegas. Eles me ensinavam como me posicionar, escolhiam a bola para mim e diziam até a intensidade com que eu devia jogar. Meu principal instrutor era o motorista, meu adversário. E todos comemoravam os meus acertos.

Às vezes eu errava tanto que meu parceiro perdia a paciência. Uma vez, depois do expediente, lá estávamos num botecão perto de uma grande empresa. O bar encheu de operários. E, naquele dia, especialmente, meu parceiro reclamava muito das minhas jogadas. Ele estava mesmo sem paciência.

Quanto mais ele falava mais eu errava. Até que um dos operários me chamou para ser parceira dele. É claro que aceitei. O melhor é que o cara era tão bom que jogava por mim e por ele. Então, mesmo quando eu errava, ele salvava. A nossa dupla ficou imbatível. Ninguém nos tirava da mesa. Nem mesmo o cinegrafista. Terminei o dia como campeã e com uma satisfação interna enorme. Mas nos dias seguintes tudo voltou à rotina: eu, com meus erros; meu parceiro, com as queixas; e todos nós, contentes.

terça-feira, junho 14

O desejo dos outros

Outro dia me ligou a manicure para confirmar meu horário; aproveitei para desmarcar os pés e deixar agendado só as mãos. Expliquei que não queria ter o trabalho de tirar a meia-calça que me aquece nesses dias frios. Ocultei o principal motivo: fazer as mãos já ia tomar meu tempo dedicado à novela Cordel Encantado. Se fizesses os pés, perderia a novela inteira.

Sábia decisão a minha. Naquele dia, o capítulo estava especialmente bom. A princesa Açucena/Aurora tem movido mundos e fundos para fazer prevalecer sua vontade de se casar com Jesuíno, contrariando os desejos de seu pai de sangue, o rei Augusto. A infeliz Antonia sofre muito e um pouco mais porque está sendo obrigada a atender os desejos de seu irmão crápula, o coronelzinho Timóteo, e os do delegado Patoré. Ela vai se casar com o delegado asqueroso como parte do acordo que permitirá a Timóteo cometer um crime sem ser importunado pela Polícia.

Ao se lembrar do desejo manifestado por Cícero (“Se morrer quero ser enterrado com as glórias do cangaço”), o lindíssimo capitão Herculano interrompe o cortejo para levar à força o corpo de Cícero, contrariando os desejos da família de velar o filho perdido. Qual desejo vale mais, o do pobre Cícero ou o da pobre mãe?

Esses episódios ficcionais me levaram a pensar no livro da Maria Rita Kehl, “O tempo e o cão”, que acabei de ler. Ela fala das depressões na atualidade. E explica o quanto aquela mãe, extremamente dedicada e super onipresente, que atende prontamente todos os desejos do filho, contribui para a formação de um depressivo. O depressivo que não sente desejo, que não vivenciou o sentido de ausência-presença – fundamental para nossa formação – porque a mãe nunca lhe deixou faltar nada. O livro é de uma profundidade cativante. Levou merecidamente o prêmio Jabuti como livro do ano em 2010.

E penso o quanto abrimos mão de nossos desejos para atender os desejos dos outros, que podem ser caprichosos e custar caro. Nem sempre conseguimos distinguir aquilo que é nosso e o que é do outro. E não nos damos conta disso. Estamos lá, prontos para entender e atender o outro, e não sabemos nos ouvir, ouvir o nosso desejo, saber de fato o que queremos. Não estou falando de egoísmo, mas de desejos legítimos que confirmam nossa identidade e garantem nossa sanidade.

quinta-feira, junho 9

A mãe e a chuva!

Acordo com o barulho da chuva. São 5 da manhã. Penso na seca e aceito a chuva. Penso também que vai esfriar mais e que eu não combino com frio. Penso que vão cancelar a viagem pela região que eu iria acompanhar para fazer matéria sobre obras. Mas sei que vou ter que esperar mais tempo para confirmar o cancelamento. Não consigo mais dormir, mas fico na cama até tocar o despertador. Na hora marcada, me levanto e cumpro todo o ritual matinal.

Na hora de acordar meu filho, ele reclama: – Mãe, tá frio!! Eu concordo e acrescento que está chovendo. Ele pede: – Deixa eu faltar da aula? Penso que este apelo não faria nenhum sentido na minha infância. Nunca nunquinha meu pai me deixaria faltar porque está chovendo. Aliás, não havia nenhum motivo que justificasse a falta à aula. Doença, só aquelas que realmente te derrubavam, tipo hepatite, sarampo ou algo assim.

Mas eu cedi ao apelo. Pedi um beijo e deixei que voltasse à cama. Péssima mãe, eu. Ainda fechei a porta do quarto dele para que meus barulhos não atrapalhassem seu sono. E pensei que eu queria que minha mãe estivesse aqui e me dissesse que, não, eu não precisava também sair para o trabalho porque a chuva acompanhada de frio é motivo mais que suficiente para todos voltarmos à cama.

Imagem: http://www.blogdokedj.com/2010/09/chuva.html

segunda-feira, junho 6

Letra H

No começo das palavras, a letra H é tão discreta que realça a vogal ao seu lado. Se o vizinho é uma consoante, parece música, quer fazer sons diferentes, borbulhantes, um chiado ou um nhém-nhém-nhém. No meio do nome de alguém, quer ser charmosa.
No final das interjeições, revela espanto, surpresa ou terror!
Serve também pra ajudar quem quer provar que é homem mesmo! Bem-humorada, ajuda as pessoas a rirem por escrito. Camaleoa esta letra, não?

quarta-feira, junho 1

No meio da rua

Ainda não são 7h30. No cruzamento perigoso, o velhinho japonês não observa as luzes do sinaleiro nem as faixas no chão. Se lança em meio aos carros, encarando os motoristas. Por que motivo ele se arrisca assim? Será que é para buscar o pão quentinho na padaria ou estará ávido por notícias do jornal, também quente, nas bancas? Ele deve ser do tempo em que confiar no olho no olho era suficiente. Como o dia mal começou, os motoristas ainda estão pensando nos sonhos que tiveram a noite e é melhor não estragar a manhã tão bonita com suas buzinas. O velhinho atravessa em paz e chega incólume ao seu destino.

terça-feira, maio 31

O Sol

O Sol da manhã faz brotar espinhos na minha cama. Preciso ver o que o dia vai me aprontar!

Após o almoço, o Sol é sonífero!

E quando a Luz se põe no final do dia, meu corpo desacelera, entra em contagem regressiva até que a escuridão me conduza a Morfeu!

Meia palavra basta?

Não sou boa entendedora. Não quero meias palavras, quero-as inteiras. Talvez seja arriscado demais deixar que eu termine a frase. Posso inverter o sentido; posso entender muito bem que você não vive sem mim!

quinta-feira, maio 26

Eu assobio... tu assobias...

Tem um menino já crescido que quer aprender a assobiar. Eu tentei ensiná-lo, mas nem tudo a gente consegue. Lembro de três conquistas minhas quando criança: assobiar, fazer bola de chiclé e andar de bicicleta. Assobiar e fazer bola de chiclé tem um processo parecido porque tem que assoprar até fazer som ou encher a goma.

Quando a minha avó paterna me ouvia assobiar ela perguntava: – Quem é o Joãozinho que está assobiando? Eu achava engraçado e dizia que era eu, sem me tocar que ela estava me explicando que assobiar era coisa de menino. Eu não entendia ou fingia não entender.

Na adolescência, lembro que uma vez o inspetor da escola chamou a minha atenção porque eu subi as escadas assobiando. Mais uma vez não entendi. Mal sabia ele que uma de minhas frustrações é não saber fazer aquele assobio estridente, comum entre os moleques, que colocam os dedos na boca.

Meu pai sempre teve um assobio característico que nós conhecíamos de longe. Quando ele estava chegando do trabalho, ele assobiava lá da rua e nós corríamos ao encontro dele. Pena que este texto não tem som, se não eu reproduziria aqui o assobio.

Da próxima vez que eu encontrá-lo, vou pedir para ele assobiar aquele assobio! Acho que ando precisando assobiar mais... Quem sabe o menino aprende!

segunda-feira, maio 2

A paciência que eu não tenho

Minha impaciência é um monstro que tento domar todos os dias, todas as horas, todos os minutos, todos os segundos. Um monstro que devora e apavora.
Todas as manhãs eu faço um pacto comigo mesma para ter paciência. E nas horas que se sucedem, é um constante quebrar e repactuar minha intenção.

À espera do elevador, minha resignação pode ser confundida com paciência quando na verdade é apenas uma letargia mental por causa do sono. Diante dos primeiros segundos de lentidão do carro à minha frente para arrancar no sinal verde, o monstro já ruge dentro de mim. Se ele pudesse devoraria todos os motoristas lentos, e todos os motoqueiros apressados.

Com uma patada, o monstro derrubaria todos os participantes de reuniões intermináveis que insistem em esclarecer pontos já esclarecidos ou em entabular dúvidas já entabuladas. Com um sopro o monstro entorpeceria todos aqueles que exigem de mim um suspiro longo, mas disfarçado, de quem tenta atropelar tudo e fazer tudo no tempo que eu gostaria e não no tempo normal das coisas.

Esse monstro às vezes me transforma em monstra. Ainda bem que eu sei que ele está ali e fico feliz quando consigo domá-lo - é uma conquista contínua - porque já me disseram que quando você vence um defeito, você adquire a virtude oposta. E eu fico admirada quando vejo a paciência que eu tenho.

sexta-feira, abril 29

Infância

Quando eu era criança, não existia muito o nome Carina. Era meio diferente. Um menino que estudava comigo falou pra mãe dele que na sala havia uma menina com um nome estranho, que parecia margarina.

Depois eu me apaixonei por este menino. Quando estava com nove anos, no terceiro ano, eu estava em pé na sala e ele disse: "Senta aí, ô transparente!" Bem, mexeu com minha brabeza. Eu respondi: "Me espera na saída" (chamando pra briga).

Quando bateu o sinal, eu estava rezando para ele ter esquecido o assunto, mas ele não esqueceu. Estava me esperando do lado de fora do portão da escola. Apanhei bastante. Acho que eu só tentei agarrar os cabelos dele, sem sucesso. Fiquei com muita vergonha. Decidi que nunca mais ia chamar ninguém pra briga porque eu sempre fui fraquinha. E acho que ali acabou a paixão que eu sentia por ele.

Há pouco tempo, estávamos lá em Piraju, meus irmãos, amigos de infância, e eu contei o episódio que, é claro, nunca esqueci. Quando ficaram sabendo que aquele menino tinha me batido, ficaram indignados. E um disse: "Bem, com certeza, foi a única vez que ele conseguiu bater em alguém." Ao ouvir isso me senti defendida e pensei, feliz: - A justiça tarda, mas não falha!

segunda-feira, abril 25

A vida

O banho morno acarinha a pele.
O café quente acalenta a alma.
O Sol no céu alegra o dia.
O sorriso franco anima a jornada.
O abraço terno afaga por dentro.
O abraço forte ajuda a aprumar.
O olhar direto alerta os sentidos.
O beijo caliente me acende inteira.
A indiferença abala a crença.
A briga à toa atazana um pouco.
A briga séria antecipa o inferno.
A reconciliação ata novamente.
A morte apaga tudo.
A fé anuncia a luz.
A falta de fé avista o fim.

terça-feira, abril 19

A fila que não anda e a esperança

Enquanto espero, espero. Espero que o pensamento se assente para saber o que pensar enquanto espero.
Espero e penso que a esperança é um esperar otimista. É esperar com expectativa de que vai dar certo - seja lá o que você estiver esperando: o filho nascer, a sua vez chegar, o amor aparecer.
Enquanto se espera com esperança, a ansiedade passa a ser o quando. O tempo da espera angustia. A espera será curta? Longa? E a espera do que não se sabe o quanto esperar? O tempo da espera não se mede com relógio.
Esperar virou tão cotidiano que criaram as salas de espera. São a ante-sala do objeto de desejo.
A espera confere graus de classificação social. O tempo de espera é inversamente proporcional à importância de quem espera. Os mais importantes são esperados. Os desimportantes esperam mais.
E nem sempre alcança quem espera, embora a esperança seja a última a morrer. E morrer, que é certo, ninguém quase nunca espera.
Já quem espera ansiosamente a morte é um desesperançado. Já não espera mais nada da vida. Espera a morte, que é certa num tempo incerto. Esperar a morte é o fim da esperança. Saber esperar será sabedoria?

sexta-feira, abril 15

No supermercado

Mal havia entrado no supermercado, um senhor se aproximou de mim e disse que no concorrente as verduras e legumes estavam bem mais baratos. E foi recitando o preço de cada item. Elogiei a memória dele e entrei para as compras. Pensei com meus botões: – Este é dos meus! Puxa conversa com desconhecidos!

Eu gosto de conversar com desconhecidos. Você está lá na quitanda do supermercado quando se depara com um preço abusivo de algum produto. Como manifestar sua indignação? Vai ligar pra sua irmã, falando: “ Você não acredita quanto está o quilo do tomate!”? Claro que não. É uma indignação momentânea, que tem que ser compartilhada com quem está ao lado. A queixa sobre o preço só faz sentido se for feita ali, na frente do produto, em meio a donas de casa, que estão na mesma função de pensar na salada do almoço familiar.

Acho que herdei o dom de falar com desconhecidos da minha mãe, que adorava puxar uma prosa com quem estivesse ao lado. Tem gente que detesta ser abordado por quem não conhece. E, nós, do outro lado, percebemos logo. Somos ignorados. Aí a gente faz uma cara de sem graça – que o outro nem percebe porque realmente está te ignorando – e parece que você é uma louca que fala sozinha. Mesmo assim eu não desisto. Supermercado é o ambiente mais propício para esse tipo de conversa, melhor que elevador.

Em elevador, eu não falo nada. Às vezes, se o assunto for muito urgente e estiver fervilhando na minha cabeça eu comento com um vizinho, mas é complicado porque a conversa fica sem pé nem cabeça, fora de contexto. Não dá muito certo.

No mesmo dia em que o homem falou dos preços, na prateleira do leite longa vida, uma mulher já me alertou sobre determinada marca: ela havia comprado uma caixa, dentro do prazo de validade, e o leite estava todo estragado. Eu aproveitei para contar sobre um melão, pelo qual havia pagado R$ 9,50, que estava todo podre por dentro. E eu voltei ao mercado, entreguei a fruta ao gerente que aceitou sem me contestar. Ou seja, assuntos extremamente relevantes...

Fila de banco também é outro local estimulante para esses papos. Geralmente para reclamar do mau atendimento, da demora, do salário baixo dos funcionários, das taxas abusivas e do lucro alto dos banqueiros. Porque, além de falante, sou militante. Puxa, eu tô achando que eles colocaram aquelas cadeiras que fazem a gente esperar sentado com o objetivo de desestimular as conversas paralelas... Vai que viravam motim!

terça-feira, abril 12

Lobão, a mil

50 anos a mil é o título da autobiografia do músico Lobão. Assinado em conjunto com o jornalista Cláudio Júlio Tognoli, o livro tem uma forte oralidade e me fez entrar no ritmo acelerado da vida do Lobão. Realmente ele chegou aos 50 a mil por hora, e poderia também dizer que viveu mil anos em 50.

Eu já tinha uma admiração pelo músico por suas denúncias contra as gravadoras que sempre ditaram o que a gente pode ou não ouvir no rádio. Os detalhes que ele conta dão a dimensão dos interesses quase nunca nobres por trás do mercado fonográfico. E sempre admirei a autenticidade que sempre marcou suas manifestações.

O que mais me impressionou, no entanto, foram os detalhes da vida pessoal do Lobão. Aos 20 anos, ele já tinha passado poucas e boas. Esse cara deve ter uma estrutura interna muito forte para suportar todos os trancos e barrancos que lhe atravessaram a frente.

No domingo (10 de abril), assisti a uma entrevista com ele no programa Café Filosófico, da TV Cultura. O programa foi gravado antes do lançamento do livro e o tema era a Relação do Homem com o Sagrado e o Profano. Ele contou – como fez no livro – sua relação com a Umbanda. Mesmo criado numa família católica, teve seus momentos com as entidades do além, encaminhado por sua mãe. Ele teve uma mãe superprotetora e a relação entre os dois era conturbada. Ela se suicidou e deixou uma carta em que culpava Lobão por sua morte. Ainda bem que ele não deu a mínima para o recado. Aliás, acho que ele entendeu o recado desde cedo: se desse crédito à sua mãe, ele provavelmente não teria sobrevivido.

Na página 290, ele se define: "Eu sou um maluco que resolve. Qual é o problema do cara ser perneta se ele tem um bom drible? Maluco é o cara que tá malresolvido e não consegue dar cabo de seus intentos. Eu vou me cuidando como posso (...)". Ele realmente se conhece, sabe dos seus limites, suas loucuras e sua potencialidade. Ele é genial.

Na página 293, solta mais uma: "(...) Ultimamente tenho orado muito por Deus (...) Se Ele fosse onipotente e onisciente, não brincaria de erro com a humanidade (...) Em vez de pedirmos benefícios para nós, seria melhor pedir benefícios para Ele próprio, que se resolva logo e pare de brincar de autorama com a gente, por exemplo."

Lobão é um cara que torna a vida mais dinâmica e menos hipócrita. Adoro as confusões que ele causa. E acho muito legal que tenha encontrado uma companheira, Regina, que de fato o acompanha. Que ele viva outros 50, no ritmo que lhe convier.