domingo, setembro 30

A cegueira

O documentário Janela da Alma trata da cegueira e escancara aquilo que todos pensam: entre todos os sentidos, a visão é o mais valorizado pelo homem. Isso se potencializa no mundo midiático em que a imagem é a senhora absoluta. Perder a visão seria pior do que ficar surdo, ou deixar de sentir cheiros ou sabores.

Fiz matéria, uma vez, sobre um curso de fotografia para cegos. Lembro que fiquei surpresa com a pauta. Como era possível a um cego fotografar? A fotógrafa londrinense Fernanda Magalhães era quem dava o curso. E ela me contou do fotógrafo esloveno Evgen Bavcar que perdeu a visão na infância. Criado na França e com incursão em vários países, ele conta que as suas referências partem sempre do que ele viu na Eslovênia. A imagem que ele tem da luz é da luz da Eslovênia. E por isso diz: “Tenho só uma pequena lâmpada eslovena para iluminar o mundo”.

O poeta cego
No ensaio A Cegueira, o grande escritor argentino Jorge Luis Borges fala sobre sua cegueira. E fala disso com tanta delicadeza que enternece... Ele conceitua a sua cegueira como “modesta” por ser total em um olho e parcial no outro. Ou seja, ele fala da própria cegueira com humildade.

Segundo Borges, ao contrário do pensamento geral, a cegueira – pelo menos a dele – não é a escuridão. O preto inclusive é uma das cores de que mais tem saudades. Do preto e do vermelho. “O mundo do cego não é a noite que as pessoas supõem. (...)” A falta dessa escuridão é a experiência dele, do pai e da avó que também morreram cegos. “Cegos sorridentes e corajosos”. Ele esperava morrer corajoso como eles. “Herdam-se muitas coisas (a cegueira, por exemplo), mas não se herda a coragem (...)” Mais adiante, no ensaio, fala: “Não permiti que a cegueira me acovardasse”.

Ele explica melhor a sua “cegueira modesta”, ao dizer que ainda enxergava algumas cores:
“O cego vive em um mundo bastante incômodo, um mundo indefinido, do qual emerge alguma cor: para mim, ainda o amarelo, ainda o azul (...), ainda o verde (...). O branco desapareceu ou confunde-se com o cinza. (...)” O fato de enxergar essas cores, para ele, significa que ele não tem a “cegueira perfeita”.

A maneira como Borges vai falando da sua cegueira me emociona a cada leitura de seu ensaio. Ele diz que a história dele não é especialmente dramática porque não ocorreu de maneira abrupta. “É dramático o caso daqueles que perdem a visão bruscamente: trata-se de uma fulminação, de um elipse, mas, no meu caso, esse lento crepúsculo começou quando comecei a enxergar”. Ele foi perdendo a visão ao longo de mais de 50 anos. Começou em 1899 e ele notou que não conseguia mais ler nem escrever em 1955.

Essa data coincide com um momento especial em sua vida. Foi quando ele assume a direção da Biblioteca Nacional, em Buenos Aires, o que lhe deu uma de suas maiores alegrias. Para ele, Deus o tratou com “magnífica ironia” porque lhe deu a um só tempo os livros e a noite, a incapacidade de lê-los.

Borges conta que ele foi o terceiro diretor cego da Biblioteca Nacional. Em referência a um deles, Paul Groussac, que foi diretor quando Borges era pequeno, diz: “(...) os dois éramos homens de letras e percorríamos a Biblioteca de livros vedados. Quase poderíamos dizer, para nossos olhos escuros, de livros em branco, de livros sem letras”.

Quando percebe que para saber o nome dos livros deveria perguntar a seus amigos, lembra-se de uma frase de Rudolf Steiner: quando algo termina, devemos pensar que algo começa. “O conselho é saudável, mas de difícil execução, já que sabemos o que perdemos, não o que ganharemos. Temos uma imagem muito precisa, uma imagem às vezes dilacerante daquilo que perdemos, mas ignoramos o que pode substituí-lo, ou sucedê-lo”.

Caramba! Eu fico aqui pensando que homem foi Borges! Que alma grandiosa! “Tomei uma decisão. Disse a mim mesmo: já que perdi o querido mundo das aparências, devo criar outra coisa, devo criar o futuro, o sucessor do mundo visível que, de fato, perdi”.

E depois enumera o que foi que ganhou com a cegueira. Aprendeu oralmente o anglo-saxão, conhecimentos de islandês, “o prazer de tantas linhas, tantos versos, de tantos poemas (...)”. São esses os dons que ele diz dever à sombra.

Para Borges, a cegueira não foi uma desgraça total. “Deve ser vista como um modo de vida: é um dos estilos de vida dos homens”. E completa: “Para a tarefa do artista, a cegueira não é de todo uma desgraça: pode ser um instrumento”.

Na conclusão do ensaio, cita um verso de Goethe: ‘tudo que é próximo se afasta’. “Goethe o escreveu referindo-se ao crepúsculo da tarde. (...) Ao entardecer, as coisas mais próximas já se afastam de nossos olhos, assim como o mundo visível se afastou de meus olhos definitivamente.
Goethe pode ter-se referido não apenas ao crepúsculo, mas à vida. Todas as coisas vão nos deixando. A velhice deve ser a suprema solidão, salvo que a suprema solidão é a morte. Também ‘tudo que é próximo se afasta’ refere-se ao lento processo da cegueira (...) que não é uma total desventura. Que deve ser mais um instrumento entre tantos, tão estranhos, que o destino ou o acaso nos deparam”.

A imagem está no blog:
http://charlesblake.wordpress.com/2007/06/22/biblioteca-personal-jorge-luis-borges/

5 comentários:

Cristiana Soares disse...

Que coisa maravilhosa esse post...

Fiquei curiosa para saber "como funciona" esse negócio de fotógrafo-cego...

E sobre "A velhice deve ser a suprema solidão"... essa citação é sua ou dele? Porque não sei se concordo com ela...

Mas tudo muito lindo...

carina paccola disse...

A citação é sempre dele. Eu só faço uns comentários e olhe lá, né. O cara é muito, né?

O ensaio dele é maravilhoso.

Ah, na fotografia, eles aprendem a calcular a distância do objeto a ser fotografado e como devem regular a máquina. É bem interessante.

Anônimo disse...

Carina, é emocionante este texto...e vc o desenvolve de uma forma muito envolvente. Um grande beijo, saudades.

Cristiana Soares disse...

Mas de que adianta eles fazerem isso tudo e depois não verem o que fotografaram?

carina paccola disse...

cris, eles não vêem nada, mas ficam felizes de fazer algo que outros podem ver. É um desafio.