Tenho dificuldade de me livrar de jornais não lidos. Talvez
por ser jornalista, parece que não quero perder nenhuma notícia publicada. Ou será
que é uma tentativa de valorizar o tempo perdido por algum colega repórter que
se debruçou naquelas linhas? De qualquer forma, tenho por hábito ler jornal
vencido. Como isso não se configura em transtorno obsessivo compulsivo, consigo
perceber de quando em quando que não darei conta daquela pilha que só cresce e
todos vão para o lixo de uma vez só. Mas ao meu lado sempre sobra um ou outro
para eu ao menos passar os olhos antes de irem para as mãos dos recicladores.
Quando me deparo com algum artigo ou reportagem primorosa
fico feliz por não ter me desfeito daquele papel velho. Hoje, peguei em mãos o
Estadão de domingo passado (10 de junho) e me detive no título “Ao jegue, com
carinho”, do jornalista francês Gilles Lapouge. E ele fala sobre os jumentos.
De uma maneira tão bela e carinhosa que passei a amar os jumentos, tão
desprezados pela humanidade.
“Está na hora de lembrar dos jumentos” – começa ele,
exaltando a boniteza, força e resignação desses animais que servem só pra
servir os homens. “O jumento não é só corajoso e útil: também tem caráter. Apesar
de sua cortesia e indulgência com relação às loucuras e vilanias dos homens,
jamais transige em questão de princípios”.
Em tempos de extrema valorização da esperteza, talvez o
jumento tenha mesmo algo a nos ensinar. “O jumento sabe de tudo. Ele não trota
nas mesmas paisagens que nós. Apenas aparenta compartilhar nossos caminhos,
quando na realidade está em outro lugar, vem de outro lugar, vai para outro
lugar. Ele atravessa educadamente nossa geografia sem fazer ruído para não nos
perturbar, mas na verdade não caminha no mesmo passo que nós. Somente os poetas
compreenderam a nobreza do jumento”.
Em outro trecho escreve que, com o passar dos milênios, o jumento
começa a entender que as coisas não vão muito bem para ele, mas não se revolta.
“Sua tática é sutil. O cérebro humano não a alcança. O jumento é submisso e
glorioso ao mesmo tempo, resignado e irredutível, escravo e soberano, vencido e
vencedor. (...) Encontrou obstáculos e os contornou. Ele se salvou do tempo. Sobre
seus belos cascos, trota nas pradarias onde as horas não soam.
Se os espancamos, ele nos olha com um olhar incrédulo e
belo. Não fica com raiva. Tem pena de nós. Não nos culpa, só nos observa. Ele
gostaria de nos ajudar a ser menos vingativos. E nos consola de nossas
maldades. ‘Não se preocupe’, parece dizer, arreganhando os beiços, ‘não é sua culpa.
Você é assim, mas isso vai passar. É um mau momento, uma má eternidade. Depois,
você vai ver, tudo será melhor’.
Nossa, fiquei comovida ao ser consolada por um jumento!
Texto do Gilles Lapouge:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,ao-jegue-com-carinho,884541,0.htm
3 comentários:
Obrigada por nos dar a chance de agir com menos ignorância nesta nossa má eternidade. Linda a sua sensibilidade para com textos outrora não lidos, mas que aqui tornam-se reescritos. Um beijo e muita saudade, Gabi
Carina, se você gostou do artigo de Lapouge, certamente vai adorar este livrinho genial de J. O. de Meira Penna: "O Elogio do Burro". Há um exemplar na Biblioteca Municipal. Não deixe de ler; é bom mesmo.
http://www.meirapenna.com.br/publicacoes/livros/1980/Elogio%20do%20burro/index.htm
Gabi, saudade igual. obrigada. beijo
Paulo, obrigada pela dica. Vou ler, sim, afinal agora sou fã dos burros e jumentos (rs), portanto, tudo sobre eles me diz respeito. abs
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