quinta-feira, abril 20

O rio,as cartas e o meu pai

Em Piraju, sonhei que fui dar um mergulho no Rio Paranapanema. Eu queria me exibir um pouco. Na verdade, queria exibir era a exuberância do rio. Era um ponto raso. Estava de olhos abertos. Quando chego ao fundo, vejo o solo. Era tudo cinza. Mas achei tão lindo que fico surpresa e aspiro a água. Imediatamente me dou conta de que estou sem ar e começo a subir. Mas meus movimentos se tornam lentos. Não sei se vai dar tempo. Penso que as pessoas que estão fora não vão perceber o meu desespero porque afinal acabei de entrar na água. Acordo com o meu suspiro fundo numa tentativa de respirar. Não sei o que aconteceu comigo no sonho. Fico impressionada. Vou ao google. Vejo que o maior número de afogamentos se dá em rio e não no mar. É domingo de Páscoa. Conto meu sonho para o meu irmão. Ele fala que o problema já está resolvido, afinal, eu acordei.
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Jogo Paciência Spider com quatro naipes. Quando as primeiras cartas são muito ruins e eu resolvo ir em frente, muitas vezes vou encontrando caminhos que quase consigo “ganhar” o jogo. Mas se esgotam as possibilidades e resolvo jogar novamente. E aí já não encontro mais as mesmas saídas. Penso sempre que na primeira vez fico mais atenta e esperta. Na segunda, me torno displicente porque sei que existem possibilidades. Mas elas só existiram antes porque eu estava atenta e cuidadosa. Agora, fica um jogo chocho. Daí eu penso se na vida a gente não faz isso também. Às vezes as cartas estão ruins mas a gente dá um jeito e descobre detalhes pelo caminho que são tão interessantes que já valeu a pena percorrê-lo, mesmo que no final sobrem cartas que não se encaixam. E não adianta mudar as jogadas porque as cartas foram dispostas de tal forma que realmente não há saída. Ou você se diverte tentando fazer da melhor maneira. Ou recomece outra partida.

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E hoje faz um ano que meu pai morreu. Toda vez que faço palavras cruzadas me lembro dele. Ele sempre assinou o Estadão. Nos últimos anos, passou a assinar o Jornal de Bauru. E ele sempre fez as palavras cruzadas. Quando surgiu o Sudoku, ele começou a fazer, mas acho que não achava tão interessante. Às vezes, em Piraju, ele pedia para eu ajuda-lo. E queria que eu explicasse o meu raciocínio. Quando a gente era criança e ia jogar trilha com ele,  ele não admitia que a gente fizesse um movimento em que não houvesse lógica. Aquilo me cansava um pouco porque nem sempre eu sabia porque tinha movido a peça. De qualquer forma, ele me confessou que às vezes olhava as respostas do Sudoku que estavam ali no jornal. E dava a seguinte explicação: o Estadão só publicava o resultado das palavras cruzadas na edição seguinte. Mas no Sudoku as respostas estavam na mesma edição, ou seja, o jornal autorizava que você colasse as respostas. Eu sempre ria. Meu pai era engraçado.

segunda-feira, março 13

Vida marvada

Não sei. A gente chega numa idade em que ouvir música pode nos remeter a 20, 30 anos atrás e vem à memória lembranças tão fortes de como você vivia, o que pensava, seus sonhos, que até dói na alma. Ontem vi aquele vídeo em que um cara responde as perguntas feitas por ele mesmo quando tinha 18 anos. Filho de cineasta, ele e o pai filmaram perguntas para serem respondidas quando estivesse mais velho. E ele topou o desafio aos 56 anos – 38 anos mais tarde. O vídeo tem apenas alguns trechos, em inglês (o que dificulta bastante a minha compreensão), mas dá pra sentir que a parada não vai ser fácil. Tem momentos em que ele chega a se irritar com a ingenuidade das perguntas e com o que pensava aos 18. A gente não sabe nada da vida. Não sabe o que vai vir pela frente. A gente se firma em alguns princípios e valores e vai em busca de sobrevivência e de fazer alguma diferença no mundo. Mas, como diz Lulu Santos, a vida vem em ondas. E muitas vezes você calcula mal, leva um caldo, se rala na areia, tenta segurar o biquíni e ainda manter a pose.  E segurar o choro. Às vezes é só você e você – e o marzão, claro, sempre a te derrubar! Mesmo assim, segue em frente. Já me peguei pensando – quando vejo gente estropiada – que se fosse eu iria preferir a morte. Mas não. A gente sempre prefere a vida. Seja lá como for. Seja com qual música estiver tocando, a gente segue tentando.

segunda-feira, fevereiro 27

Laura vai à praia

Imagem: BOL (não consegui identificar o autor)
Da areia, observo a família que passa. À frente, dois homens carregam cadeiras, guarda-sol e outros apetrechos. Logo atrás, a menina de chapeuzinho rosa, com seus 3 ou 4 anos. Em seguida, as mulheres, mais um homem. A avó também está junto. A menina tenta alcançar os homens à frente. Com seus passinhos miúdos, não consegue. Solta algumas frases. Ninguém lhe dá ouvidos. Mal os homens baixam o acampamento, ela deixa o chinelinho e corre em direção ao mar, recuando um pouco da linha de concentração familiar. Embora ninguém lhe desse ouvidos, estão todos atentos e começam a chamar: Laura, Laura! Agora, é ela quem não lhes dá pelota! Pisa na areia molhada e pára. Me pergunto por que  escolhera este ponto mais afastado da família? A resposta está logo ali, a três metros de Laura: duas menininhas deitadas, de bruços, na beirinha do mar, vendo o movimento das ondas, que chegam mansinhas até elas. Laura faz de tudo pra ser vista. Quando o mar recua, ela avança para depois fugir correndo com movimentos graciosos. Ao longe, a família continua chamando Laura, que agora está concentrada em fazer novas amizades. Ali não há perigo. Até eu estou cuidando de Laura. Finalmente, as meninas a veem. Fico pensando se vão ignorá-la. Mas, não, crianças não ignoram crianças. Laura chega mais perto. Para se tornar uma delas, tira o chapéu. Num descuido, ela o molha no mar. Começam a brincar juntas. Logo, aparece o pai: Laura! Será um estraga-prazeres? Não, só quer o chapéu. Devagar, ele se distancia, torcendo aquele paninho rosa. As meninas se deitam, e Laura está bem no meio das duas. Pronto. Juntas, olham o mar, segurando o rosto com as mãozinhas. São as três melhores amigas.

domingo, janeiro 22

O consumo e o desapego


Sou uma moça bastante controlada no quesito “consumo”. Gosto do conceito “viver com menos, ter apenas o essencial”, mas no dia a dia não é assim tão fácil praticar esta ideia. Embora o dinheiro seja um limite concreto, muitas vezes é possível enlouquecer com roupitchas e sapatos que cabem no orçamento e, no entanto, não são assim tão necessários. Quando resisto a uma compra que seria supérflua, gosto da sensação de não ter sucumbido ao desejo. Mas tem uma coisa que me livra da culpa: os livros. É como se o fato de ser jornalista fosse um salvo-conduto para comprar livros ao meu bel prazer, afinal, se o meu ofício é escrever, posso comprar quantos livros quiser e puder. E a internet é uma grande livraria com entrega rápida. Chegar do trabalho e encontrar na porta uma caixa com livros é bom demais! Todo fim de ano eu costumo tirar todos os livros da estante para limpar um por um, separar os que serão doados e os que serão vendidos em sebo e organizar espaço para os novos. No entanto, desta vez, foram dois anos sem fazer isso e agora percebi que preciso rever minha posição de “livros sem-limites”. Já levei uma mala de livros de comunicação, jornalismo e reportagem para a biblioteca da UEL. Separei alguns para o filho de uma amiga que está estudando Ciências Sociais, para alguns amigos, e duas caixas enormes que vão para o sebo. É muita coisa. E restaram ainda muitos – a maioria eu nem li! É muito livro bom sem nem ter sido sequer folheado. Ou seja, em 2017, não vou comprar nenhum. E estou contente com esta decisão. Também me desfiz de muito papel com artigos e textos acadêmicos. Até fotografias entraram na dança. Estou me desfazendo daquelas desfocadas, feias, que não dizem nada. Estou tendo muito trabalho, mas parece que só depois disto é que meu ano vai começar de fato. E viva o desapego! 

segunda-feira, janeiro 16

À cor da pele

As cores me comovem. Posso passar um bom tempo diante de uma tela admirando as cores, observando as pinceladas e aquela abundância de pigmentos. Não precisa ter uma forma definida. Nenhuma figura. Apenas cor. Não sei por qual canal se processa a minha relação com elas. Assim como uma música pode me imobilizar, tornando-me apenas respiração e sensação, as cores também têm este poder. Me causam maravilhamento.Uma paleta aparentemente tem um número limitado de cores, mas eu sei que elas são infinitas, que entre uma e outra há muitos tons e variações. Elas são indóceis. Talvez nunca se repitam nas mãos de um artista que se deleita em misturá-las e criar novas tonalidades. Quando aprendi sobre Yves Klein, um pintor francês, que criou um azul singular, hoje nomeado de Azul Klein, fiquei pensando como poderia ser isso, existir um azul tão singular. Logo em seguida, pude ver esta tela em exposição na Pinacoteca e fiquei em êxtase. Fiquei ali parada querendo penetrar naquela azul tão especial. Ora, mas não é apenas uma cor azul? Pois então, as cores são assim. Podem me tocar.
Em dezembro, no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba,  vi pela primeira vez as obras do artista Gonçalo Ivo, na exposição A Pele da Pintura (em exposição até 27 de fevereiro). Telas grandes, com cores tão lindas que me hipnotizaram. Não queria sair dali. Embora a curadoria apresente as obras “como uma superfície, que se confunde com uma pele rugosa, flácida, frágil ou reluzente”, a mim, a pintura que vejo ali não me remete a textura, mas toca a minha pele. Mais adiante leio no material de apresentação que Gonçalo Ivo transmite vida a uma condição imaterial. “Não lhe interessa a cor pela cor, mas a cor como coisa, como algo vivo pulsante, corpóreo”. É isso! Depois, leio ainda que ele é filho do escritor e poeta Lêdo Ivo. Caramba!








domingo, janeiro 8

O último Natal

Este foi o primeiro Natal sem meu pai. A casa em Piraju foi enchendo aos poucos durante a semana anterior. Em vários momentos, eu ficava com a sensação de que meu pai estava lá, em algum cômodo, como nos natais anteriores. Me fez lembrar da sensação que tive na saída do cemitério, após o sepultamento da minha mãe.  No trajeto até a saída, meu pensamento percorria o entorno e me vinha a ideia de que estávamos esquecendo alguém. Na contagem inconsciente que meu cérebro fazia, faltava minha mãe. E eu teria que me acostumar que não seríamos mais completos.

Agora, faltou meu pai. No Natal de 2015, fui para Piraju apenas no dia 24. Na entrada da cidade, no semáforo antes da ponte sobre o Rio Paranapanema, o freio não funcionou e bati no carro da frente. Não foi nada grave, mas fiquei assustada. Quando entrei em casa, estavam meus irmãos, cunhados e meu pai. Contei o que tinha acontecido. Meu irmão disse que levaria meu carro à oficina. Meu pai me deu uma dica: quando o freio não funcionar, dê várias freadinhas rápidas...

Meu carro voltou da oficina no sábado à tarde e, de fato, havia um problema no freio, que agora estava resolvido. Eu voltaria a Londrina no domingo à tarde. De manhã, comentei com meu pai que me sentia um pouco insegura com o freio do carro. Ele perguntou: Quer que eu vá com você dar uma volta? E fomos. Andamos por várias ruas. Subi para a Estação, o bairro que é a minha entrada de Piraju. Mostrei o local onde o freio havia falhado. Conversamos coisas banais. Foi a única vez que dirigi para o meu pai. E foi o último dia em que o vi fora do hospital.

No domingo de Páscoa, depois de complicações de uma cirurgia, o visitei na UTI. Ele estava sedado. Eu, com 50, ele com 81. Foi a primeira vez que pude fazer carinho no seu rosto e no seu cabelo. Ainda pensei: Acho que ele só está deixando porque está sedado...

Sábado, 9 de abril. Peguei um ônibus de Londrina rumo a Jaú, onde ele estava hospitalizado. Minha irmã e eu entramos na UTI no horário da visita da tarde. Meu pai estava consciente, mas com traqueostomia. Não podia falar. Também não conseguia escrever de forma legível. À noite, na casa da minha irmã, em Lençóis Paulista, cidade onde também morava meu pai, fizemos um cartaz com as letras do alfabeto, os números e algumas palavras.

Domingo. 10 de abril. Fomos à visita da noite. Eu pegaria ônibus de volta às 22 horas. Ele estava bem. Conseguiu se comunicar melhor com o cartaz. Reclamou que os enfermeiros eram muito rígidos. Conversou com minha irmã sobre uma viagem ao México. Eu disse que queria ir junto. Ele brincou, olhou pra minha irmã como quem diz: Será que a gente leva? Quis saber o horário do meu ônibus, que horas eu chegaria em Londrina. Quando deu a hora, me despedi. E pude ler nos seus lábios: Boa viagem! Fui embora com o coração partido, mas com alguma esperança de que ele conseguiria se recuperar. Foi o nosso último encontro! Dez dias depois ele se foi.


quarta-feira, fevereiro 6

Declaração de amor

Morar no centro tem sua graça. Como a de assistir de camarote aqueles carros de som com uma mensagem de amor, em alto e bom som, da Amanda para o Rafael, que ficou ali plantado na calçada, ouvindo tudo. Formou-se um meio círculo de pessoas desconhecidas que passavam e ficaram curiosas pra saber que mensagem era aquela. Com fundo musical romântico, as palaras eram lidas pela moça do carro de som. A mensagem era reconciliadora. Publicamente, Amanda pedia que Rafael voltasse pra ela. Sem ele, ela dizia que a vida não tinha sentido. No final, os dois se abraçaram. Sem óculos e do sexto andar, me pareceu um abraço meio protocolar. O público ao redor - e acima - bateu palma. Não sei se o Rafael vai ou não voltar para a Amanda. Mas ele nunca vai poder dizer que ela não tentou.