sexta-feira, novembro 30

Meus muitos irmãos

A família (Tarsila do Amaral)

Quando eu nasci, já tinha quatro irmãos; depois, vieram mais dois. Eu sempre digo que a gente só entende os pais depois que tem filhos. Mas até hoje eu não sei como meus pais conseguiram educar sete crianças. Houve época em que consumíamos dez litros de leite por dia; é muita comida, muito barulho, muito limite pra dar pra tanta gente ao mesmo tempo.

Na maior parte das vezes a gente recebia por parte dos meus pais uma atenção meio diluída, meio repartida, dividida. E eu me pergunto se era por isso que eu inventava de ficar sempre doente, porque aí eu acordava à noite, com febre, todo mundo estava dormindo, e minha mãe podia dar um pouco de atenção exclusiva para mim.

Uma vez namorei um cara filho único. E ele reclamava que eu não dava assim tanta atenção para ele. Eu era atenciosa, mas não na quantidade que ele dizia precisar. Depois que o namoro acabou, eu pensei que desde cedo aprendi a repartir atenção. A saber que nunca nada era tudo pra mim.

Eu gosto de ter crescido com muitos irmãos. Gosto de ter morado numa casa cheia de crianças. Se há momentos em que os pais não estão ali monitorando tudo o tempo todo, os próprios irmãos se encarregam de ensinar coisas fundamentais nas relações humanas.

Se um invadisse o espaço do outro ou tentasse ser espertinho, a reação era rápida. A gente aprendia a resolver problemas com mais autonomia, acabava se virando meio sozinha, afinal, não dava pra esperar pai ou mãe.

Na adultice, ter muitos irmãos também é muito bom. De certa forma, você se sente menos só no mundo. Mesmo que um esteja longe do outro, é bom saber que eles existem. E que se você gritar tem alguém pra responder.

terça-feira, novembro 27

Eu uso óculos


Comecei a usar óculos aos 26 anos, quando estava morando em São Paulo. Notei que já não enxergava como antes num ponto de ônibus. Eu só conseguia ler o destino do ônibus quando ele já estava muito próximo. O exame no oftalmo constatou miopia leve. No início, ele recomendou óculos para o cinema. O mais difícil foi acostumar a ver tudo dentro de uma moldura. Com o tempo, seu olhar abstrai e consegue ir além dos aros.

Já tentei usar lentes de contato, mas no teste não consegui colocar sozinha aquelas películas dentro dos olhos. Como eu me conheço razoavelmente bem, desisti; afinal, seria muito provável eu ficar irritadíssima pela manhã tentando conciliar destreza e paciência – o que não me é muito comum. Já imaginei que num rompante de impaciência eu iria engolir as lentes, não sem antes mastigá-las, é claro.

Existem alguns inconvenientes ao usar óculos. Primeiro, lavar as lentes. Às vezes, quando se está muito absorta no trabalho ou na própria vida, demora um pouco para perceber que não é a vida que está ensebada.

Eu também não gosto de usar óculos quando estou toda arrumada para uma festa, por exemplo, e antes de sair de casa tenho que colocar aquele acessório no rosto. Acho que não combina, mas prefiro não arriscar. Seria desastroso deixar de cumprimentar algum amigo querido ou então paquerar um homem errado por falta de visão.

Outro dia eu estava, sem óculos, vendo um programa na tevê em que aparecia Tom Jobim falando de sua parceria com Vinicius de Moraes. Meu filho disse que nunca tinha visto Tom Jobim – e constatou que o músico era mais velho do que ele pensava. Aí eu tive que contar, assim, a seco, que Tom Jobim já não estava mais entre os vivos. Ele morreu no mesmo ano em que meu filho nasceu. Eu me lembro bem daquele dia. Num gesto amoroso, meu filho perguntou: “Mãe, quer que eu pegue seus óculos?” E me trouxe lá minhas lentes para que eu pudesse remexer minhas lembranças com mais nitidez.